http://plataformaongd.pt/noticias.aspx?info=outrasorganizacoes&id=1677
PAIS
À RASCA
UMA
REFLEXÃO PERTINENTE. O quadro de fundo é europeu, mas tem lições para outros
contextos, como o nosso, de Portugal, e o de Angola...
Um
Dia Isto Tinha Que Acontecer.
(por Mia Couto)
Está
à rasca a geração dos pais que educaram os seus meninos numa abastança
caprichosa, protegendo-os de dificuldades e escondendo-lhes as agruras da vida.
Está
à rasca a geração dos filhos que nunca foram ensinados a lidar com frustrações.
A
ironia de tudo isto é que os jovens que agora se dizem (e também estão) à rasca
são os que mais tiveram tudo. Nunca nenhuma geração foi, como esta, tão
privilegiada na sua infância e na sua adolescência. E nunca a sociedade exigiu
tão pouco aos seus jovens como lhes tem sido exigido nos últimos anos.
Deslumbradas com a melhoria significativa das
condições de vida, a minha geração e as seguintes (actualmente entre os 30 e os
50 anos) vingaram-se das dificuldades em que foram criadas, no antes ou no pós
1974, e quiseram dar aos seus filhos o melhor.
Ansiosos por sublimar as suas próprias
frustrações, os pais investiram nos seus descendentes: proporcionaram-lhes os
estudos que fazem deles a geração mais qualificada de sempre (já lá vamos...),
mas também lhes deram uma vida desafogada, mimos e mordomias, entradas nos locais
de diversão, cartas de condução e 1.º automóvel, depósitos de combustível
cheios, dinheiro no bolso para que nada lhes faltasse. Mesmo quando as
expectativas de primeiro emprego saíram goradas, a família continuou presente,
a garantir aos filhos cama, mesa e roupa lavada.
Durante anos, acreditaram estes pais e estas
mães estar a fazer o melhor; o dinheiro ia chegando para comprar (quase) tudo,
quantas vezes em substituição de princípios e de uma educação para a qual não
havia tempo, já que ele era todo para o trabalho, garante do ordenado com que
se compra (quase) tudo. E éramos (quase) todos felizes.
Depois, veio a crise, o aumento do custo de
vida, o desemprego, ... A vaquinha emagreceu, feneceu, secou.
Foi então que os pais ficaram à rasca.
Os pais à rasca não vão a um concerto, mas os
seus rebentos enchem Pavilhões Atlânticos e festivais de música e bares e
discotecas onde não se entra à borla nem se consome fiado.
Os pais à rasca deixaram de ir ao restaurante,
para poderem continuar a pagar restaurante aos filhos, num país onde uma festa
de aniversário de adolescente que se preza é no restaurante e vedada a pais.
São pais que contam os cêntimos para pagar à
rasca as contas da água e da luz e do resto, e que abdicam dos seus pequenos
prazeres para que os filhos não prescindam da internet de banda larga a alta
velocidade, nem dos qualquercoisaphones ou pads, sempre de última geração.
São estes pais mesmo à rasca, que já não
aguentam, que começam a ter de dizer "não". É um "não" que
nunca ensinaram os filhos a ouvir, e que por isso eles não suportam, nem
compreendem, porque eles têm direitos, porque eles têm necessidades, porque
eles têm expectativas, porque lhes disseram que eles são muito bons e eles
querem, e querem, querem o que já ninguém lhes pode dar!
A sociedade colhe assim hoje os frutos do que
semeou durante pelo menos duas décadas.
Eis agora uma geração de pais impotentes e
frustrados.
Eis agora uma geração jovem altamente
qualificada, que andou muito por escolas e universidades mas que estudou pouco
e que aprendeu e sabe na proporção do que estudou. Uma geração que colecciona
diplomas com que o país lhes alimenta o ego insuflado, mas que são uma ilusão,
pois correspondem a pouco conhecimento teórico e a duvidosa capacidade operacional.
Eis uma geração que vai a toda a parte, mas
que não sabe estar em sítio nenhum. Uma geração que tem acesso a informação sem
que isso signifique que é informada; uma geração dotada de trôpegas
competências de leitura e interpretação da realidade em que se insere.
Eis uma geração habituada a comunicar por
abreviaturas e frustrada por não poder abreviar do mesmo modo o caminho para o
sucesso. Uma geração que deseja saltar as etapas da ascensão social à mesma
velocidade que queimou etapas de crescimento. Uma geração que distingue mal a
diferença entre emprego e trabalho, ambicionando mais aquele do que este, num
tempo em que nem um nem outro abundam.
Eis uma geração que, de repente, se apercebeu
que não manda no mundo como mandou nos pais e que agora quer ditar regras à
sociedade como as foi ditando à escola, alarvemente e sem maneiras.
Eis uma geração tão habituada ao muito e ao
supérfluo que o pouco não lhe chega e o acessório se lhe tornou indispensável.
Eis uma geração consumista, insaciável e
completamente desorientada.
Eis uma geração preparadinha para ser
arrastada, para servir de montada a quem é exímio na arte de cavalgar
demagogicamente sobre o desespero alheio.
Há talento e cultura e capacidade e
competência e solidariedade e inteligência nesta geração?
Claro que há. Conheço uns bons e valentes
punhados de exemplos!
Os jovens que detêm estas
capacidades-características não encaixam no retrato colectivo, pouco se
identificam com os seus contemporâneos, e nem são esses que se queixam assim
(embora estejam à rasca, como todos nós).
Chego a ter a impressão de que, se alguns
jovens mais inflamados pudessem, atirariam ao tapete os seus contemporâneos que
trabalham bem, os que são empreendedores, os que conseguem bons resultados
académicos, porque, que inveja! que chatice!, são betinhos, cromos que só
estorvam os outros (como se viu no último Prós e Contras) e, oh, injustiça!, já
estão a ser capazes de abarbatar bons ordenados e a subir na vida.
E nós, os mais velhos, estaremos em vias de
ser caçados à entrada dos nossos locais de trabalho, para deixarmos livres os
invejados lugares a que alguns acham ter direito e que pelos vistos - e a
acreditar no que ultimamente ouvimos de algumas almas - ocupamos injusta,
imerecida e indevidamente?!!!
Novos e velhos, todos estamos à rasca.
Apesar do tom desta minha prosa, o que eu tenho
mesmo é pena destes jovens.
Tudo o que atrás escrevi serve apenas para
demonstrar a minha firme convicção de que a culpa não é deles.
A culpa de tudo isto é nossa, que não soubemos
formar nem educar, nem fazer melhor, mas é uma culpa que morre solteira, porque
é de todos, e a sociedade não consegue, não quer, não pode assumi-la.
Curiosamente, não é desta culpa maior que os jovens agora nos acusam.
Haverá mais triste prova do nosso falhanço
ESTE TEXTO DÁ PARA REFLECTIR... e MUITO!
Sem comentários:
Enviar um comentário