O ano da
graça da parte do Senhor
«O Espírito do Senhor está
sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres. Ele me
enviou a proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos, a restituir a
liberdade aos oprimidos, a proclamar o ano da graça da parte do Senhor.»
Naquele sábado, como acabámos de ouvir, Jesus leu na sinagoga
de Nazaré o anúncio do “ano da graça”, o jubileu. Mas não o leu apenas,
declarou-o começado, realizando-o nele próprio e em seu redor: «Cumpriu-se hoje
mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir».
Era uma marcação antiga, o jubileu, que de cinquenta em
cinquenta anos deveria ser como um recomeço absoluto do Povo de Deus, fazendo
jus a tal nome. Povo reconciliado com o seu Deus e entre todos e cada um dos
seus membros, escravidões abolidas, terras restituídas, gente congraçada (cf. Lv 25, 8 ss). Um
mundo como Deus não deixava de o querer, onde todos tivessem lugar primeiro,
verdadeiramente irmãos.
Apesar de anunciado há tanto tempo, nunca acontecera
realmente. Agora Jesus proclamava-o como certo e a acontecer de súbito. Nele
próprio, com certeza, absolutamente de Deus e de Deus para todos. E o que fez a
partir de então, até à cruz que lhe levantaram em Jerusalém, foi conforme ao
anúncio. O jubileu concretizou-se por palavras de inteira justiça e gestos de
verdadeira paz. Quando o quiseram impedir e mesmo encerrar com a grande pedra
do sepulcro, ainda mais irradiou numa ressurreição que não deixa de alastrar –
e de que nós próprios seremos hoje o sinal.
Por isso e só por isso estamos aqui, preparando a Páscoa e
celebrando-a sempre, num tempo repleto, o ano da graça da parte do Senhor.
Dizendo tradicionalmente, no “ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de
2018”.
Caríssimos padres, caríssimos irmãos e irmãs: Lembrar as
palavras de Jesus na sinagoga de Nazaré da Galileia, lembrá-las em Missa
Crismal, para que o Espírito e os óleos sacramentais santifiquem muitas vidas,
tudo isto só pode incluir-nos ainda mais na realidade e missão de Jesus, por
isso mesmo o “Cristo” (ungido).
Tudo partirá de Deus, assim recomecemos com Ele, como Jesus a
partir do Pai. Não só um pouco melhor do que é costume, mas sim tudo melhor
porque é de Cristo. Não negamos, antes reconhecemos, quanto de bom há neste
mundo, que é constante criação divina. A humanidade não deixa de ser imagem de
Deus, mesmo quando Lhe perca ou diminua a semelhança. Nem temos, nós cristãos,
o exclusivo do bem, que felizmente se assinala em tantas pessoas de boa
vontade. O próprio Jesus o disse a um discípulo mais cioso, que se queixava porque
alguém fora do grupo praticava igualmente o bem. Advertiu-o o Mestre: «Não o
impeçais, pois quem não é contra nós é por nós» (Lc 9, 50). É por
nós – e predisposto ao que Cristo traz como totalidade, primeira e última.
O ponto verdadeiramente cristão é retomar agora a perfeição
do princípio, outro modo de dizer a intenção divina que restaura e garante a
verdade das coisas. O pecado, original e originante, é, muito pelo contrário, o
afastamento da Fonte, que nos resseca depois. Esquecemos o princípio e perdemos-lhe
o fim, a finalidade e o sentido. Desvinculados de Deus, perdemo-nos a nós e
esquecemos os outros.
O Espírito restaura-nos em Cristo, na perfeita filiação e na
fraternidade autêntica. É este o ano da graça e o jubileu realizado. Onde a
vida é respeitada e nunca cerceada, quando nova e quando idosa, quando saudável
e quando frágil. Onde a justiça é prioritária, dando realmente a cada um o que
lhe é devido, em termos de habitação e trabalho, de educação e saúde. Onde quem
chega seja bem acolhido e integrado.
Usando a linguagem do Papa Francisco, teremos de passar do
pecado que nos isola à vinculação que nos refaz. Isto em relação a Deus, aos
outros e à criação inteira: «O grande risco do mundo atual, com a sua múltipla
e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza individualista que brota do
coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais,
da consciência isolada». Efetivamente, as coisas são boas, mas não têm em si
mesmas nem a sua causa nem a sua finalidade. São ocasiões de fruição e
comunhão, dando graças a Deus e repartindo com todos. Se as retemos em nós,
como se fossem tudo, o resultado é triste, continua o Papa: «Quando a vida
interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os
outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza
da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem» (Evangelii Gaudium, nº 2).
Os outros e a criação inteira são o campo total do nosso
jubileu vinculativo. Para realizarmos aquela “ecologia integral” que a
encíclica Laudato si’ tanto urgiu.
Vinculados à vida, respeitando-a inteiramente da conceção à morte natural;
vinculados aos outros na dignidade efetivamente reconhecida; vinculados à
criação inteira, casa comum de todos. Acolhamos a advertência papal: «Quando,
na própria realidade, não se reconhece a importância de um pobre, de um embrião
humano, de uma pessoa com deficiência – só para dar alguns exemplos -,
dificilmente se saberá escutar os gritos da própria natureza. Tudo está
interligado. Se o ser humano se declara autónomo da realidade e se constitui
dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua existência…» (Laudato si’, nº 117).
Por isso o Papa Francisco insiste tanto na necessidade duma
vinculação que previna e ultrapasse qualquer deriva egoísta. Vinculação que
tenha como lugar original e pedagógico a família, para nascer, crescer e
aprender a conviver.
Devemos fazer deste ponto uma prioridade irrecusável na
pastoral da Igreja. O Papa está tão convencido desta prioridade de vincular as
famílias para vincular a sociedade que ainda este ano insistiu, falando ao
corpo diplomático acreditado no Vaticano, a 8 de janeiro: «… não se mantém de
pé uma casa construída sobre a areia de relacionamentos frágeis e volúveis, mas
é preciso a rocha, sobre a qual assentar bases sólidas. E a rocha é
precisamente aquela comunhão de amor, fiel e indissolúvel, que une o homem e a
mulher, comunhão essa que tem uma beleza austera, um caráter sacro e inviolável
e uma função natural na ordem social».
Caríssimos sacerdotes e pastores do Povo de Deus no
Patriarcado de Lisboa, com os nossos irmãos diáconos e todos os batizados: Os
compromissos sacerdotais renovados, os óleos sacramentais abençoados, tudo se
ordena ao ano da graça começado em Cristo e agora prosseguido, com o mesmo
Espírito. Continua a ser a recriação do mundo, o jubileu ansiado. Aprendamos a
conviver com Deus, com os outros, com a criação inteira, reforçando cada
comunidade familiar por ação da Igreja, família espiritual de todos.
O que implica duas atitudes básicas, pastoralmente falando:
Primeiro – e porque é a Palavra de Deus que nos suscita a fé, como lembramos e
cumprimos com a Constituição Sinodal de Lisboa em plena receção – apresentemos
sempre e com toda a clareza o ensinamento de Cristo sobre o matrimónio (cf. Mt 19, 1 ss e Mc 10, 1 ss).
Tal não diminui a atenção devida às situações de fragilidade neste campo, mas
acompanha-as em “discernimento dinâmico”, rumo à efetivação dos ditames
evangélicos. Ao mesmo tempo, é-nos pedido um reforçado empenho na preparação e
acompanhamento do matrimónio e das famílias.
Numa fórmula feliz e programática, o Papa cita a seguinte
proposição sinodal: «A principal contribuição para a pastoral familiar é
oferecida pela paróquia, que é uma família de famílias» (Amoris Laetitia, nº 202). Para
insistir, mais à frente: «Tanto a pastoral pré-matrimonial como a matrimonial
devem ser, antes de mais nada, uma pastoral do vínculo, na qual se ofereçam
elementos que ajudem quer a amadurecer o amor quer a superar os momentos duros»
(nº 211).
A celebração plena e coerente da Missa Crismal há de
levar-nos, no Espírito de Cristo, ao cumprimento do jubileu que o mundo espera,
do ano da graça da parte do Senhor, proclamado naquele sábado em Nazaré da
Galileia. Trata-se da vinculação geral, outro nome da aliança plena, nossa com
Deus, com tudo e com todos. Da família à comunidade cristã, da vida respeitada
e promovida no seu arco existencial completo à inclusão de cada um,
especialmente dos mais frágeis.
O prefácio da primeira Missa da Reconciliação proclama-o
excelentemente. Dando graças a Deus por sempre nos chamar a uma vida mais
feliz, continua assim: «Apesar de tantas vezes termos sido infiéis à vossa
aliança, não Vos afastais de nós; antes, por Jesus Cristo, Vosso Filho, Nosso
Senhor, estabelecestes entre Vós e a família humana um vínculo tão forte que
nada o poderá destruir». - Da parte de Deus, o vínculo está seguro. No Espírito
de Cristo, também o estará da nossa!
Sé de Lisboa, 29 de março de 2018
+ Manuel, Cardeal-Patriarca