Convite


" A Igreja convida-nos a aprender de Maria (...) a contemplar o projecto de amor do pai pela humanidade, para amá-la como Ele a ama."



Mensagem Bento XVI, Dia Mundial das Missões 2010
















quinta-feira, 29 de março de 2018



O ano da graça da parte do Senhor

«O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres. Ele me enviou a proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos, a restituir a liberdade aos oprimidos, a proclamar o ano da graça da parte do Senhor.»


Naquele sábado, como acabámos de ouvir, Jesus leu na sinagoga de Nazaré o anúncio do “ano da graça”, o jubileu. Mas não o leu apenas, declarou-o começado, realizando-o nele próprio e em seu redor: «Cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir».
Era uma marcação antiga, o jubileu, que de cinquenta em cinquenta anos deveria ser como um recomeço absoluto do Povo de Deus, fazendo jus a tal nome. Povo reconciliado com o seu Deus e entre todos e cada um dos seus membros, escravidões abolidas, terras restituídas, gente congraçada (cf. Lv 25, 8 ss). Um mundo como Deus não deixava de o querer, onde todos tivessem lugar primeiro, verdadeiramente irmãos.
Apesar de anunciado há tanto tempo, nunca acontecera realmente. Agora Jesus proclamava-o como certo e a acontecer de súbito. Nele próprio, com certeza, absolutamente de Deus e de Deus para todos. E o que fez a partir de então, até à cruz que lhe levantaram em Jerusalém, foi conforme ao anúncio. O jubileu concretizou-se por palavras de inteira justiça e gestos de verdadeira paz. Quando o quiseram impedir e mesmo encerrar com a grande pedra do sepulcro, ainda mais irradiou numa ressurreição que não deixa de alastrar – e de que nós próprios seremos hoje o sinal. 
Por isso e só por isso estamos aqui, preparando a Páscoa e celebrando-a sempre, num tempo repleto, o ano da graça da parte do Senhor. Dizendo tradicionalmente, no “ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2018”. 
Caríssimos padres, caríssimos irmãos e irmãs: Lembrar as palavras de Jesus na sinagoga de Nazaré da Galileia, lembrá-las em Missa Crismal, para que o Espírito e os óleos sacramentais santifiquem muitas vidas, tudo isto só pode incluir-nos ainda mais na realidade e missão de Jesus, por isso mesmo o “Cristo” (ungido).
Tudo partirá de Deus, assim recomecemos com Ele, como Jesus a partir do Pai. Não só um pouco melhor do que é costume, mas sim tudo melhor porque é de Cristo. Não negamos, antes reconhecemos, quanto de bom há neste mundo, que é constante criação divina. A humanidade não deixa de ser imagem de Deus, mesmo quando Lhe perca ou diminua a semelhança. Nem temos, nós cristãos, o exclusivo do bem, que felizmente se assinala em tantas pessoas de boa vontade. O próprio Jesus o disse a um discípulo mais cioso, que se queixava porque alguém fora do grupo praticava igualmente o bem. Advertiu-o o Mestre: «Não o impeçais, pois quem não é contra nós é por nós» (Lc 9, 50). É por nós – e predisposto ao que Cristo traz como totalidade, primeira e última.
O ponto verdadeiramente cristão é retomar agora a perfeição do princípio, outro modo de dizer a intenção divina que restaura e garante a verdade das coisas. O pecado, original e originante, é, muito pelo contrário, o afastamento da Fonte, que nos resseca depois. Esquecemos o princípio e perdemos-lhe o fim, a finalidade e o sentido. Desvinculados de Deus, perdemo-nos a nós e esquecemos os outros. 
O Espírito restaura-nos em Cristo, na perfeita filiação e na fraternidade autêntica. É este o ano da graça e o jubileu realizado. Onde a vida é respeitada e nunca cerceada, quando nova e quando idosa, quando saudável e quando frágil. Onde a justiça é prioritária, dando realmente a cada um o que lhe é devido, em termos de habitação e trabalho, de educação e saúde. Onde quem chega seja bem acolhido e integrado.  
Usando a linguagem do Papa Francisco, teremos de passar do pecado que nos isola à vinculação que nos refaz. Isto em relação a Deus, aos outros e à criação inteira: «O grande risco do mundo atual, com a sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada». Efetivamente, as coisas são boas, mas não têm em si mesmas nem a sua causa nem a sua finalidade. São ocasiões de fruição e comunhão, dando graças a Deus e repartindo com todos. Se as retemos em nós, como se fossem tudo, o resultado é triste, continua o Papa: «Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem» (Evangelii Gaudium, nº 2).
Os outros e a criação inteira são o campo total do nosso jubileu vinculativo. Para realizarmos aquela “ecologia integral” que a encíclica Laudato si’ tanto urgiu. Vinculados à vida, respeitando-a inteiramente da conceção à morte natural; vinculados aos outros na dignidade efetivamente reconhecida; vinculados à criação inteira, casa comum de todos. Acolhamos a advertência papal: «Quando, na própria realidade, não se reconhece a importância de um pobre, de um embrião humano, de uma pessoa com deficiência – só para dar alguns exemplos -, dificilmente se saberá escutar os gritos da própria natureza. Tudo está interligado. Se o ser humano se declara autónomo da realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua existência…» (Laudato si’, nº 117).     

Por isso o Papa Francisco insiste tanto na necessidade duma vinculação que previna e ultrapasse qualquer deriva egoísta. Vinculação que tenha como lugar original e pedagógico a família, para nascer, crescer e aprender a conviver. 
Devemos fazer deste ponto uma prioridade irrecusável na pastoral da Igreja. O Papa está tão convencido desta prioridade de vincular as famílias para vincular a sociedade que ainda este ano insistiu, falando ao corpo diplomático acreditado no Vaticano, a 8 de janeiro: «… não se mantém de pé uma casa construída sobre a areia de relacionamentos frágeis e volúveis, mas é preciso a rocha, sobre a qual assentar bases sólidas. E a rocha é precisamente aquela comunhão de amor, fiel e indissolúvel, que une o homem e a mulher, comunhão essa que tem uma beleza austera, um caráter sacro e inviolável e uma função natural na ordem social».
Caríssimos sacerdotes e pastores do Povo de Deus no Patriarcado de Lisboa, com os nossos irmãos diáconos e todos os batizados: Os compromissos sacerdotais renovados, os óleos sacramentais abençoados, tudo se ordena ao ano da graça começado em Cristo e agora prosseguido, com o mesmo Espírito. Continua a ser a recriação do mundo, o jubileu ansiado. Aprendamos a conviver com Deus, com os outros, com a criação inteira, reforçando cada comunidade familiar por ação da Igreja, família espiritual de todos.
O que implica duas atitudes básicas, pastoralmente falando: Primeiro – e porque é a Palavra de Deus que nos suscita a fé, como lembramos e cumprimos com a Constituição Sinodal de Lisboa em plena receção – apresentemos sempre e com toda a clareza o ensinamento de Cristo sobre o matrimónio (cf. Mt 19, 1 ss e Mc 10, 1 ss). Tal não diminui a atenção devida às situações de fragilidade neste campo, mas acompanha-as em “discernimento dinâmico”, rumo à efetivação dos ditames evangélicos. Ao mesmo tempo, é-nos pedido um reforçado empenho na preparação e acompanhamento do matrimónio e das famílias. 
Numa fórmula feliz e programática, o Papa cita a seguinte proposição sinodal: «A principal contribuição para a pastoral familiar é oferecida pela paróquia, que é uma família de famílias» (Amoris Laetitia, nº 202). Para insistir, mais à frente: «Tanto a pastoral pré-matrimonial como a matrimonial devem ser, antes de mais nada, uma pastoral do vínculo, na qual se ofereçam elementos que ajudem quer a amadurecer o amor quer a superar os momentos duros» (nº 211).

A celebração plena e coerente da Missa Crismal há de levar-nos, no Espírito de Cristo, ao cumprimento do jubileu que o mundo espera, do ano da graça da parte do Senhor, proclamado naquele sábado em Nazaré da Galileia. Trata-se da vinculação geral, outro nome da aliança plena, nossa com Deus, com tudo e com todos. Da família à comunidade cristã, da vida respeitada e promovida no seu arco existencial completo à inclusão de cada um, especialmente dos mais frágeis. 
O prefácio da primeira Missa da Reconciliação proclama-o excelentemente. Dando graças a Deus por sempre nos chamar a uma vida mais feliz, continua assim: «Apesar de tantas vezes termos sido infiéis à vossa aliança, não Vos afastais de nós; antes, por Jesus Cristo, Vosso Filho, Nosso Senhor, estabelecestes entre Vós e a família humana um vínculo tão forte que nada o poderá destruir». - Da parte de Deus, o vínculo está seguro. No Espírito de Cristo, também o estará da nossa!

Sé de Lisboa, 29 de março de 2018

+ Manuel, Cardeal-Patriarca  




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