Francisco compreendeu o «essencial da
vida que é Deus»
04.04.2019
É uma das maiores especialistas na vida
dos pastorinhos de Fátima, e ninguém esquece o sorriso rasgado com que participou
na cerimónia de canonização das crianças Francisco e Jacinta. Quando passam 100
anos sobre a morte de Francisco, a Ir. Ângela Coelho leva-nos a conhecer melhor
este menino que já era «diretor espiritual» de Lúcia e Jacinta.
É o centenário da morte de Francisco... como é que tudo aconteceu?
No final de 1918, Francisco e sua irmã Jacinta ficaram doentes, por altura do
Outono, da gripe espanhola, uma epidemia que apareceu no pós I Guerrra Mundial
e assolou a Europa e uma grande parte do mundo. Ficaram eles os dois, mas muita
gente em Fátima, eles não foram os únicos. A única diferença é que eles tinham
a consciência de que isso ia acontecer. Não que iriam ficar com gripe, mas que
iriam morrer, porque Nossa Senhora lhes tinha dito na aparição de junho. E é a
partir dessa aparição que eles começam de facto a exprimir este conhecimento de
que iam para o Céu e que estavam muito contentes por isso, porque iam ter com
Nossa Senhora e Nosso Senhor. Entretanto, o Francisco fica logo ali doente e
vai acamar, e é o primeiro a ficar fragilizado e depois morre no dia 4 de abril
de 1919. À noite, ao cair do dia, na sua casa em Fátima. É o único que morre em
Fátima.
Morre em paz?
Morre em paz. Ele teve dois grandes desejos antes de morrer: comungar para
tomar “Jesus escondido”, e para isso precisava de se confessar, porque naquela
época ninguém comungava antes de se confessar. É muito bonito, porque o padre
consentiu nisto e uma das coisas que me encanta na hora da morte do Francisco é
precisamente isto: a sua preparação para a confissão. Já estava na cama, e uma
das irmãs vai chamar a Lúcia porque o Francisco queria falar com ela. Isto terá
sido no dia 2 de abril, e ele pede à Lúcia «diz-me se me viste fazer algum
pecado», e isto é tão bonito. Ele pede a ajuda para que o ajudem a fazer o seu
grande exame de consciência. É extraordinário, e sabemos os pecados: a Lúcia
diz que o viu desobedecer de vez em quando aos pais quando lhe diziam para não
ir ter com ela à pastagem e ele ia, e a Jacinta tinha-o visto pegar num tostão
para comprar um instrumento musical sem autorização dos pais, e quando os
rapazes de uma aldeia de Boleiros atiraram pedras aos de Fátima, ele também
atirou pedras aos de Boleiros. Ele diz «esse já os confessei, mas volto a
confessar», e depois tem esta expressão tão bonita «secalhar é por causa dos
meus pecados que Nosso Senhor anda tão triste, mas eu, se vivesse, não
cometeria mais nenhum, porque estou mesmo arrependido». Vemos nesta confissão
uma enorme delicadeza de alma. Por um lado, delicadeza e simplicidade. Só uma
pessoa muito simples é que pede aos outros “ajuda-me a ver o que eu fiz de
mal”.
Mesmo no fim, não deixa as suas companheiras de missão...
É alguém que percebe que não faz caminho sozinho, que precisava da ajuda da
Jacinta e da Lúcia até para este momento. Ele está a perguntar pelo pior de si
mesmo, e é tão bonito isto no Francisco. Depois, mostra-nos outra das grandes
características da confissão, que é o “eu não volto a fazer, estou mesmo
arrependido”. Vemos o Francisco muito maduro espiritualmente. Faz a sua
confissão e, no dia seguinte, 3 de abril à noite, o prior dá-lhe a comunhão e
ele fica em profunda oração. Quando a Lúcia chega diz-lhe «hoje sou mais feliz
que tu porque tenho no meu peito Jesus escondido», e no dia seguinte
despedem-se de uma forma muito bonita. Lúcia descreve-a e diz «Adeus Francisco
até ao Céu», uma despedida tão bonita, de quem morre em paz, a sofrer, mas com
a certeza que se iriam encontrar no Céu.
O prior consentiu, disse. Eram tempos
difíceis para eles...
As aparições estavam numa fase... em termos de Igreja não tinha havido
pronunciamento, nem sequer o início do processo canónico de aprovação. Nem
sequer o bispo havia chegado à diocese, porque Leiria estava no processo de se
tornar independente do Patriarcado de Lisboa mas ainda não tinha bispo, que só
chegará em 1920. Por isso é uma altura em que não há uma pessoa da Igreja que
inicie os processos, está numa fase de descrédito e não está pacífico.
Mas era pouco usual uma criança pedir isto...
Mas é o Francisco (risos). A sua mãe conta no processo que ele olhou para a
janela e disse «olha mãe que luz tão bonita», e ficou-se com um sorriso olhando
para uma janela onde estava uma luz muito bonita.
Uma criança com uma maturidade espiritual de um adulto...
A maturidade espiritual do Francisco não apenas é superior a um bom cristão da
sua idade, mas de facto em alguns aspetos foi alcançado por aquilo que é a
nossa Verdade. A verdade do ser humano enquanto filho de Deus, e isso tanto dá
para as crianças como para os adultos. Ele percebe o essencial da vida e vive a
partir daí. E o essencial da vida é Deus. O núcleo mais essencial é a nossa
relação com Deus e o Francisco vive tudo a partir daí. Isso é excecional mesmo
para um adulto. Durante todo o percurso das Aparições ele fica muito centrado
no essencial, acho que é a característica dele que mais amo, e que mais sinto
como um dos grades desafios para o nosso tempo.
Como é que é vivida a morte dele?
É vivida com saudades, sobretudo a Jacinta, que tem muitas saudades dele, mas
era animada pela ideia de que em breve estaria com ele. Creio que a que mais
sofre é a Lúcia, porque não só sofre as saudades concretas do Francisco, mas
vai sofrer depois as saudades concretas da Jacinta e uma coisa ainda mais dura
que é a solidão dos únicos que a podiam entender, os únicos companheiros de
viagem numa época da história em que ela tem muito pouca gente que acredite
nela, a começar pela sua mãe, que não acredita nela e não vai acreditar até ao
fim. Respeitam-na, tratam-na bem, porque há uma fase em que a chegam a
maltratar. De qualquer forma, naquela época a mortalidade infantil era tão
grande que não há o viver a morte como há hoje. Hoje é mais o sentido do
desespero, muitas vezes são filhos únicos e um pai que perde uma criança hoje
perde muito futuro. Naquela altura, temos de perceber que a morte era vivida de
forma diferente, era mais natural. Não há nenhum desespero, há uma aceitação
serena da vontade de Deus, porque era gente que já vivia nessa serenidade, numa
conjuntura em que também se tem de incluir a epidemia do pós-guerra. Neste
quadro a morte era vivida com mais naturalidade. O que havia era muita saudade,
não só da Lúcia e da Jacinta, mas do Ti Marto, o pai do Francisco que gostava
muito do menino, tinha uma afeição muito grande por ele e gostava mesmo muito
dele.
Qual é o papel do Francisco na “equipa” dos três pastorinhos?
Eu chamo-lhe o diretor espiritual do grupo. A Lúcia era a líder, e o Francisco
o diretor espiritual. Digo isto porque, naqueles momentos de dúvida da Lúcia,
ele dá aqueles conselhos mais sábios, usando critérios engraçados. Durante as
aparições, a Lúcia não quer ir à aparição de julho porque as pessoas começaram
a dizer que aquilo só podia ser coisa do Demónio. Eles começam a trocar
argumentos com a Lúcia dizendo que o Demónio é feio e Nossa Senhora é bonita,
portanto só podia ser Nossa Senhora, ou porque Nossa Senhora ia para o Céu e
eles sabem que o Demónio vinha debaixo da terra. Depois, nas aparições, quando
ele vê a Lúcia estar com muitas brincadeiras que lhe parece que podem levar a
atitudes que seriam pecado, como os bailes de Carnaval, ou quando ela vinha da
escola em grande gritaria com os companheiros, é Francisco quem diz «então mas
tu ainda andas com essas companhias? Não venhas com eles», e dá conselhos, diz
«quando acabar a escola vais ter com Jesus escondido na Igreja, enquanto os
meninos se vão embora, e depois vens sozinha». Dos três, ele assume este papel
do conselheiro. Também é aquele que reza, muito, e tem sempre aquela palavra de
estímulo, que consola, que encoraja. Mesmo não tendo a mesma perceção das
aparições que elas as duas, porque ele não ouvia nada, mas para ele é igual,
porque aceita bem a sua condição, que eu acho uma coisa fantástica até para os
dias de hoje, e é assim que eu o vejo.
Ele também tem aquela predileção pelo Jesus escondido, uma das suas imagens
mais fortes...
Sim. O Francisco já era contemplativo, já via a presença de Deus nas coisas
ainda antes das aparições. Gostava de estar sozinho, mas com os seus botões. A
seguir à aparição do Anjo e à comunhão eucarística que fizeram, o intuir que
Deus estava triste e que, fazendo-lhe companhia, o consolava, isto apanhou-o
por completo, e passa a ser o centro conformador de toda a sua existência.
Muito concretamente, isso é estar na paróquia, e ele começa a estar na igreja,
no sacrário, até porque já estava muito doente e a caminhar com dificuldade.
Mas a adoração do Francisco não é apenas eucarística, é adorar a Deus em todo o
lugar, Deus presente nele. Ele sabe-se habitado por Deus, e gostava de se
afastar da prima e da irmã para ir para um penedo rezar o seu terço, ou muitas
vezes nem estava a rezar e elas vinham perguntar-lhe o que ele estava a fazer e
ele dizia «estou a pensar em Jesus», e isto é a contemplação. Francisco gosta
mesmo de estar com Jesus. Eu costumo dizer que ele aprendeu com Jesus escondido
a esconder-se...
Quando ia rezar na igreja, muitas vezes nem o encontravam...
Como a Igreja estava em obras, e o sacrário estava à porta da igreja ao pé da
pia batismal, ele ficava entre a pia batismal e o sacrário. Ninguém o via,
porque ele não gostava que mais ninguém ouvisse a sua oração. Ele aprendeu a
ser discreto, a fazer o bem sem ninguém saber. E ensina-nos, até no nosso
tempo, este gosto pelo silêncio. Temos tanta necessidade de silêncio, porque
estamos a desconetar-nos de nós próprios. Estamos tão ligados, de forma quase
essencial para a vida, e não conseguimos estar em silêncio. O Francisco é um
menino que continua criança com a sua atividade de pastor na sua casa. E como
ele consegue encontrar tempo para ficar sozinho e em silêncio. Gosto muito de
ver o Francisco silencioso a ensinar-nos a aprender o silêncio. Vejo-o quieto,
sossegado, e a fazer-nos entender a relatividade das coisas. Não fui o melhor
da escola... e então? É uma indiferença boa, de aceitar as suas limitações. O
Francisco era o único que não ouvia, o que mais dificuldade tinha em entender,
é o primeiro a ficar doente e a morrer... podia sentir-se diminuído ou colocado
de parte, mas nunca o faz. Aceita a sua condição, e aceita a sua forma de
participar neste mistério. Não há competição entre eles os três, e por isso não
há ciúmes nem invejas. Eu acho isto tão atual, a sério, numa sociedade onde são
os próprios pais a incutir nos filhos esta competição. Mas só um é que é feliz
na turma, no desporto, na competição? E Francisco ensina-nos isto, porque como
estava tão fundado em Deus, tudo o resto... que importa? E quando se vive isso,
entendeu-se a vida e o sentido da vida.
Uma criança difícil de ler...
O Francisco é o mais difícil de aceder, porque ele esconde-se. No processo de
redação das memórias, ele só chega na 4ª carta. São precisas três cartas para
que alguém que pede as cartas à Lúcia se aperceba que falta falar dele. E mesmo
no processo dos pastorinhos, a Jacinta tem dois volumes e ele só tem uma. As
pessoas não o conhceram tão bem, mas as poucas frases que ele diz têm impacto.
Depois da canonização têm chegado mais cartas sobre graças concedidas pelo
Francisco, estou a notar isto.
Quando cheguei à causa as graças eram dirigidas à Jacinta ou aos dois em
conjunto. Agora é aos dois em conjunto e ao Francisco, é tão engraçado...
A canonização ajudou-o a tornar-se mais conhecido?
Sim, o processo que levou à canonização ajudou. Eu mesma só acedi ao Francisco
em 2009, nos 90 anos da sua morte. Pediram-me uma conferência sobre o Francisco
e eu pensei «uma hora a falar sobre o Francisco? O que é que eu vou dizer
durante uma hora? não vou ter matéria»... até que me pus a estudar as memórias
todas só olhando para o Francisco, até sublinhei as passagens onde ele
aparecia. E percebi que há muito mais sobre ele do que possa parecer. O
episódio do pássaro, por exemplo, que eu conto rapidamente. Eles vão os três e,
na Lagoa da carreira (onde hoje é a rotunda sul), encontram um menino que tem
preso um pássaro. E o Francisco diz ao menino para soltar o pássaro, e o miúdo
diz que só se ele lhe der dinheiro, e ele aceita. Mas o rapaz queria o dinheiro
primeiro, e o Francisco faz todo o caminho para casa – 10 a 15 minutos – para
ir bucar o dinheiro. O miúdo dá-lhe o pássaro, e ele solta-o. A Lúcia diz que
ele «bate as palmas de contente dizendo “vê lá não te voltem a apanhar”». Mas
se reparar bem, o Francisco só perdeu: tempo a ir e vir a casa, o dinheiro, e
depois o pássaro. Porque é que bate as palmas de contente? Ele fica feliz tendo
perdido tudo, porque ele sabe que a felicidade está em o pássaro ser livre.
Como Jesus, que aceitou perder tudo, inclusive a própria vida, para que
fossemos livres. Este o Francisco, o menino que ensina esta liberdade interior.
No amor é preciso deixar livre quem amamos, e depois há a gratuidade, que não
espera nada em contra.
O carinho é tão grande das pessoas por eles que arrisco a dizer que a
canonização foi a única viagem do Papa Francisco em que ele não era o ator
principal...
É extraordinário. Não sei se consigo dizer isso, mas havia muita coisa a
acontecer que ultrapassava a figura do Santo Padre, e uma delas é a
canonização. Repare que o Papa é interrompido duas vezes com palmas durante a
leitura da fórmula da canonização. Eu senti um amor tão grande que ainda hoje
quando revejo aquelas imagens comovo-me, porque as pessoas interrompem o Papa.
As palmas são tão grandes... há um carinho muito grande, e tem aumentado muito.
Às vezes é impressionante a quantidade de pessoas nos túmulos, não se consegue
mesmo rezar sossegado naquela basílica.
E os relatos de graças têm aumentado?
Eu esperaria que terminassem de vez, mas continuam a chegar a uma média de 2 ou
3 por semana, é bom ver isto. O que recebemos arquivamos.
A vida destes dois são inspiradores para os cristãos de hoje. Continuamos a
trabalhar para fusão das suas vidas e da sua espiritualidade com o mesmo
entusiasmo porque acreditamos que o estilo de vida deles pode ser importante
para o cristão do Século XXI.
Porquê?
Bom, pelas caraterísticas de viver a partir do essencial, não nos perdermos com
coisas secundárias, como a imagem, ou a roupa, ou os telemóveis e computadores.
As coisas em si não têm mal nenhum, o problema é quando isto nos traz uma
angústia da existência. Ajuda-nos a aceitar a minha condição, dar o melhor de
mim, mas aceitar quem sou, não entrando numa competição desenfreada, e às vezes
desonesta, para conseguir os meus objetivos, simplesmente porque não aceito
quem sou, e vivo infeliz por isso, e provoco esta infelicidade nos outros.
Depois, a necessidade de parar e fazer silêncio. É o nível de saúde antropológico
básico, ainda antes da minha fé. Depois ensina-nos o modo de ser crente, que
passa pela Adoração Eucarística, por acompanhar Jesus, pela contemplação e pelo
cuidado da Casa Comum, porque ele amava, de facto, a Natureza. E a mensagem do
Papa para a Quaresma deste ano fala-nos também nisto.
Onde é que podemos aprender mais sobre Francisco em Fátima?
Um sítio fundamental é o Casa das Candeias, porque neste edifício construímos
um pequeno museu, aberto todos os dias, de entrada gratuita, onde temos o
pouco espólio do Francisco e da Jacinta expostos. Temos os decretos das
beatificações e canonização, e temos uma religiosa da Aliança de Santa Maria
que explica as peças a partir do olhar do Francisco e Jacinta. São visitas que
se podem marcar a partir do site www.pastorinhos.com
Depois os lugares relacionados com ele. O seu túmulo, onde estão depositados os
seus restos mortais, na Basílica de Nossa Senhora do Rosário de Fátima. Depois
a sua casa em Aljustrel, que tem o quarto onde ele morreu, e os lugares mais
importantes para ele, que é sobretudo a Local do Cabeço, não só porque teve lá
a aparições do Anjo, porque era onde gostava mais de rezar, e os Valinhos e a
igreja paroquial, onde está a pia batismal onde eles foram batizados, e o
sacrário, que ainda hoje é o mesmo apenas mudou o local dentro da Igreja.
Entrevista
e fotos: Ricardo Perna