Carlos Moura-Carvalho
OPINIÃO
A língua portuguesa na era
digital. O que quer esta língua?
O século XXI desafia-nos, a todos nós falantes da língua portuguesa, para
um imenso protagonismo.
29 de Agosto
de 2019, 5:33
Vivemos
num mundo digital: a maioria das transacções comerciais e uma parte
significativa das relações sociais migraram para o âmbito online, onde são mais
baratas e mais rápidas. Todos os dias milhões de pessoas interagem nas suas
vidas em português. A língua portuguesa aceita muitas
variações, traduz muitas culturas, tem um enorme dinamismo para acolher a
diversidade, para derrubar fronteiras.
Mas estará
preparada para se adaptar à transformação digital? Estarão todos aqueles que
falam português conscientes do que vale economicamente a sua língua? Terão
presente os versos de Pessoa “ser a mesma coisa de todos os modos possíveis
ao mesmo tempo, realizar em si toda a humanidade de todos os momentos”?
A língua
portuguesa é global com cerca de 244 milhões de falantes,
disseminados por várias latitudes. É a quarta língua mais pujante do mundo e a
terceira mais utilizada na internet. Juntos, estamos entre as cinco maiores
economias do planeta. Segundo dados recolhidos pelo Banco Mundial, 3,59% da
riqueza mundial foi produzida em países de língua portuguesa. Em 2016, as nove
economias da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) valiam quase três
biliões de dólares – se fosse um país, seria a sexta maior economia do mundo.
Os lusofalantes ocupam 18,8 milhões de km2 em 7,25% da superfície continental
da terra.
Em 2010,
o escritor cabo-verdiano Germano Almeida (Prémio Camões) dizia que os
portugueses se achavam “donos da língua”. Infelizmente, de certa forma, assim
é. Ainda há muitos “puristas” da língua portuguesa. Ainda há quem pense que o
português de Portugal é mais correto. A verdade é que a internet mudou tudo, ou
quase tudo, ao nível da linguagem. Quando o ultimo Acordo
Ortográfico foi assinado em 1990 ainda não havia Google (1998),
Facebook (2004), Twitter (2006), WhatsApp (2009), Instagram (2010). A realidade
e o contexto em que o Acordo Ortográfico foi assinado já não existem. A chamada
“nova linguagem” da internet tem como objetivo principal a comunicação rápida.
A preocupação em escrever “corretamente”, de acordo com a linguagem padrão,
fica num segundo plano. O intuito das pessoas no “novo mundo” é comunicar de
forma rápida e eficaz. Na internet, a ortografia caracteriza-se pela
simplificação: não utilização de letras maiúsculas, pontuação mínima,
substituição de grupos gráficos por sons equivalentes, inutilização das vogais
e preservação das consoantes, alongamento das vogais para indicar ênfase e
letras maiúsculas para enfatizar uma palavra ou uma mensagem.
Pensar
que a utilização destas formas pode interferir de maneira negativa na forma
como cada um escreve talvez seja um exagero. A estrutura da língua portuguesa
permite abreviações, e algumas vezes escreve-se, do ponto de vista ortográfico,
de forma incorreta, e nem por isso deixa de haver comunicação. É claro que se a
linguagem da internet for aplicada a todo o tempo, isso pode ser negativo.
Estamos num caminho sem volta e, apesar de muitos ainda estarem excluídos deste
mundo virtual, ele chegou para ficar.
Além de
que reinventar a língua portuguesa não é exclusivo da internet. Há e sempre
houve escritores que o fizeram. Na Ode marítima de Álvaro de
Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, também há alongamento das vogais para
indicar ênfase e letras maiúsculas para enfatizar uma palavra ou uma mensagem.
Nos livros de Jorge Amado também há um cuidado maior com a narrativa do que com
a estrutura técnica, não demonstrando grande preocupação com a estrutura
literária ou mesmo com as normas de ortografia e gramática – o importante é
contar bem a história. Na poesia concreta do brasileiro Augusto de Campos
integram-se os aspectos físicos ou concretos do som, da visualidade e do sentido das
palavras, constituindo experiências de “design de linguagem” que foram
pensados não para a página de um livro, mas para um cartaz. Na poesia do
escritor moçambicano Mia Couto sentimos uma linguagem minuciosa, preocupando-se
com as palavras e os diferentes sentidos despertados por ela e que deu à língua
portuguesa um léxico próprio, inspirado nas várias regiões de Moçambique,
criando um novo modelo de narrativa africana, inventando novas palavras,
mudando as classes gramaticais, empregando prefixos de forma incomum. A língua
portuguesa reinventa-se, evolui, renasce pela mão de poetas e escritores e
através da internet.
O século
XXI desafia-nos, a todos nós falantes da língua portuguesa, para um imenso
protagonismo. A nossa língua exige que tenhamos no mundo uma afirmação global,
uma grande estratégia cultural que abranja todo o nosso território linguístico.
Por isso, uma ortografia comum, mais uniformizada, como parte de uma maior
interacção cultural, poderia dar-nos a grandeza e dimensão que artistas e escritores
projetam. Ou tão só, como defendem outros, tornar mais acessíveis as variantes
do português dentro de um corpo comum, mas não uniforme, fixando uma variante
ortográfica por país. O português tem hoje apenas duas, o francês, o inglês ou
o espanhol mais de dez. Seja qual for a opção, os possíveis erros de condução
do passado não diminuem a importância de construirmos uma estratégia concertada
de afirmação da língua portuguesa para o fortalecimento da cultura e da
educação no contexto global. Um desígnio que tenha a língua como alavanca trará
ganhos económicos, sociais, culturais, ecológicos, mas também ao nível da
diplomacia cultural e dos direitos humanos.
A língua
é uma ferramenta económica, cultural e diplomática. Mas se pensarmos que nas
Nações Unidas, apesar de termos um secretário-geral português, a nossa língua continua a não ser uma língua de trabalho,
percebemos que há muito a fazer. Como também no reconhecimento recíproco de
habilitações académicas, na divulgação literária, no reconhecimento de
qualificações profissionais, bem como da portabilidade dos direitos sociais e
no âmbito da sustentabilidade e dos Oceanos. Passos importantes têm sido dados
recentemente, como o Procultura, destinado à criação de emprego nos setores
culturais. Ou a criação da Escola Portuguesa em São Paulo. Mas há muito a fazer
para a consolidação de uma comunidade de língua portuguesa, que compartilhe o
nosso universo cultural. É preciso ensaiar novas ações de colaboração rumo a
uma maior projeção global e para a construção de uma estratégia planetária para
a língua portuguesa. Precisamos pensar e projetar a nossa língua nas suas
várias dimensões, consolidando um universo cultural comum, não apenas nas suas
expressões literárias e poéticas, mas também na música, no teatro, no cinema.
Precisamos pensar e agir mais globalmente. É fácil? Não. É possível? Sim. É
necessário? Sem dúvida.
O autor
escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
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