O
DIÁRIO publica na íntegra a intervenção proferida hoje pelo Presidente da
Comissão Organizadora das Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das
Comunidades Portuguesas 2020, o Cardeal madeirense D. José Tolentino de
Mendonça.
O QUE É AMAR UM PAÍS
Agradeço ao senhor Presidente o
convite para presidir à Comissão das comemorações do dia 10 de Junho, Dia de
Portugal, de Camões e das Comunidades. Estas comemorações estavam para
acontecer não só com outro formato, mas também noutro lugar, a Madeira. No poema
inicial do seu livro intitulado Flash, o poeta Herberto Helder, ali nascido,
recorda justamente «como pesa na água (...) a raiz de uma ilha». Gostaria de
iniciar este discurso, que pensei como uma reflexão sobre as raízes, por saudar
a raiz dessa ilha-arquipélago, também minha raiz, que desde há seis séculos se
tornou uma das admiráveis entradas atlânticas de Portugal.
É uma bela tradição da nossa
República esta de convidar um cidadão a tomar a palavra neste contexto solene
para assim representar a comunidade de concidadãos que somos. É nessa condição,
como mais um entre os dez milhões de portugueses, que hoje me dirijo às
mulheres e aos homens do meu país, àquelas e àqueles que dia-a-dia o constroem,
suscitam, amam e sonham, que dia-a-dia encarnam Portugal onde quer que Portugal
seja: no território continental ou nas regiões autónomas dos Açores e da
Madeira, no espaço físico nacional ou nas extensas redes da nossa diáspora.
Se interrogássemos cada um,
provavelmente responderia que está apenas a cuidar da sua parte - a tratar do
seu trabalho, da sua família; a cultivar as suas relações ou o seu território
de vizinhança - mas é importante que se recorde que, cuidando das múltiplas
partes, estamos juntos a edificar o todo. Cada português é uma expressão de Portugal
e é chamado a sentir-se responsável por ele. Pois quando arquitetamos uma casa
não podemos esquecer que, nesse momento, estamos também a construir a cidade. E
quando pomos no mar a nossa embarcação não somos apenas responsáveis por ela,
mas pelo inteiro oceano. Ou quando queremos interpretar a árvore não podemos
esquecer que ela não viveria sem as raízes.
Camões e a arte do
desconfinamento
Pensemos no contributo de Camões.
Camões não nos deu só o poema. Se quisermos ser precisos, Camões deixou-nos em
herança a poesia. Se, à distância destes quase quinhentos anos, continuamos a
evocar coletivamente o seu nome, não é apenas porque nos ofereceu, em concreto,
o mais extraordinário mapa mental do Portugal do seu tempo, mas também porque
iniciou um inteiro povo nessa inultrapassável ciência de navegação interior que
é a poesia. A poesia é um guia náutico perpétuo; é um tratado de marinhagem
para a experiência oceânica que fazemos da vida; é uma cosmografia da alma.
Isso explica, por exemplo, que Os Lusíadas sejam, ao mesmo tempo, um livro que
nos leva por mar até à India, mas que nos conduz por terra ainda mais longe:
conduz-nos a nós próprios; conduz-nos, com uma lucidez veemente, a
representações que nos definem como indivíduos e como nação; faz-nos aportar –
e esse é o prodígio da grande literatura - àquela consciência última de nós
mesmos, ao quinhão daquelas perguntas fundamentais de cujo confronto, um ser
humano sobre a terra, não se pode isentar.
Se é verdade, como escreveu
Wittgenstein, que «os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo»,
Camões desconfinou Portugal. A quem tivesse dúvidas sobre o papel central da
cultura, das artes ou do pensamento na construção de um país bastaria recordar
isso. Camões desconfinou Portugal no século XVI e continua a ser para a nossa
época um preclaro mestre da arte do desconfinamento. Porque desconfinar não é
simplesmente voltar a ocupar o espaço comunitário, mas é poder, sim, habitá-lo
plenamente; poder modelá-lo de forma criativa, com forças e intensidades novas,
como um exercício deliberado e comprometido de cidadania. Desconfinar é
sentir-se protagonista e participante de um projeto mais amplo e em construção,
que a todos diz respeito. É não conformar-se com os limites da linguagem, das
ideias, dos modelos e do próprio tempo. Numa estação de tetos baixos, Camões é
uma inspiração para ousar sonhos grandes. E isso é tanto mais decisivo numa
época que não apenas nos confronta com múltiplas mudanças, mas sobretudo nos
coloca no interior turbulento de uma mudança de época.
Que a crise nos encontre unidos
Gostaria de recordar aqui uma
passagem do Canto Sexto d’Os Lusíadas, que celebra a chegada da expedição
portuguesa à India. Os marinheiros, dependurados na gávea, avistam finalmente
«terra alta pela proa» e passam notícia ao piloto que, por sua vez, a anuncia
vibrante a Vasco da Gama. O objetivo da missão está assim cumprido. Mas o Canto
Sexto tem uma exigente composição em antítese, à qual não podemos não prestar
atenção. É que à visão do sonho concretizado não se chega sem atravessar uma
dura experiência de crise, provocada por uma tempestade marítima que Camões
sabiamente se empenha em descrever, com impressiva força plástica. Digo
sabiamente, porque não há viagem sem tempestades. Não há demandas que não enfrentem
a sua própria complexificação. Não há itinerário histórico sem crises. Isso
vem-nos dito n’Os Lusíadas de Camões, mas também nas Metamorfoses de Ovídio, na
Eneida de Virgílio, na Odisseia de Homero ou nos Evangelhos cristãos.
No itinerário de um país, cada
geração é chamada a viver tempos bons e maus, épocas de fortuna e infelizmente
também de infortúnio, horas de calmaria e travessias borrascosas. A história
não é um continuum, mas é feita de maturações, deslocações, ruturas e
recomeços. O importante a salvaguardar é que, como comunidade, nos encontremos
unidos em torno à atualização dos valores humanos essenciais e capazes de lutar
por eles.
Mas à observação realística que
Camões faz da tempestade, gostaria de ir buscar um detalhe, na verdade uma palavra,
para a reflexão que proponho: a palavra «raízes». Na estância 79, falando dos
efeitos devastadores do vento, o poeta diz: «Quantas árvores velhas arrancaram/
Do vento bravo as fúrias indignadas/ As forçosas raízes não cuidaram/Que nunca
para o Céu fossem viradas». A leitura da imagem em jogo é imediata: as velhas
árvores reviradas ao contrário, arrancadas com violência ao solo, expõem
dramaticamente, a céu aberto, as próprias raízes. A tempestade descrita por
Camões recorda-nos, assim, a vulnerabilidade, com a qual temos sempre de fazer
conta. As raízes, que julgamos inabaláveis, são também frágeis, sofrem os
efeitos da turbulência da máquina do mundo. Não há super-países, como não há
super-homens. Todos somos chamados a perseverar com realismo e diligência nas
nossas forças e a tratar com sabedoria das nossas feridas, pois essa é a
condição de tudo o que está sobre este mundo.
O que é amar um país
O Dia de Portugal, e este Dia de
Portugal de 2020 em concreto, oferece-nos a oportunidade de nos perguntarmos o
que significa amar um país. A pensadora europeia Simone Weil, num instigante
ensaio destinado a inspirar o renascimento da Europa sob os escombros da
Segunda Grande Guerra, de cujo desfecho estamos agora a celebrar o 75º
aniversário, escreveu o seguinte: um país pode ser amado por duas razões, e
estas constituem, na verdade, dois amores distintos. Podemos amar um país
idealmente, emoldurando-o para que permaneça fixo numa imagem de glória, e
desejando que esta não se modifique jamais. Ou podemos amar um país como algo
que, precisamente por estar colocado dentro da história, sujeito aos seus
solavancos, está exposto a tantos riscos. São dois amores diferentes. Podemos
amar pela força ou amar pela fragilidade. Mas, explica Simone Weil, quando é o
reconhecimento da fragilidade a inflamar o nosso amor, a chama deste é muito
mais pura.
O amor a um país, ao nosso país,
pede-nos que coloquemos em prática a compaixão – no seu sentido mais nobre - e
que essa seja vivida como exercício efetivo da fraternidade. Compaixão e
fraternidade não são flores ocasionais. Compaixão e fraternidade são
permanentes e necessárias raízes de que nos orgulhamos, não só em relação à
história passada de Portugal, mas também àquela hodierna, que o nosso presente
escreve. E é nesse chão que precisamos, como comunidade nacional, de fincar
ainda novas raízes.
Nestes últimos meses abateu-se
sobre nós uma imprevista tempestade global que condicionou radicalmente as
nossas vidas e cujas consequências estamos ainda longe de mensurar. A pandemia
que principiou como uma crise sanitária tornou-se uma crise poliédrica, de
amplo espetro, atingindo todos os domínios da nossa vida comum. Sabendo que não
regressaremos ao ponto em que estávamos quando esta tempestade rebentou, é
importante, porém, que, como sociedade, saibamos para onde queremos ir. No
Canto Sexto d’Os Lusíadas a tempestade não suspendeu a viagem, mas ofereceu a
oportunidade para redescobrir o que significa estarmos no mesmo barco.
Reabilitar o pacto comunitário
O que significa estar no mesmo
barco? Permitam-me pegar numa parábola. Circula há anos, atribuída à
antropóloga Margaret Mead, a seguinte história. Um estudante ter-lhe-ia
perguntado qual seria para ela o primeiro sinal de civilização. E a expectativa
geral é que nomeasse, por exemplo, os primeiríssimos instrumentos de caça, as
pedras de amolar ou os ancestrais recipientes de barro. Mas a antropóloga
surpreendeu a todos, identificando como primeiro vestígio de civilização um
fémur quebrado e cicatrizado. No reino animal, um ser ferido está
automaticamente condenado à morte, pois fica fatalmente desprotegido face aos
perigos e deixa de se poder alimentar a si próprio. Que um fémur humano se
tenha quebrado e restabelecido documenta a emergência de um momento
completamente novo: quer dizer que uma pessoa não foi deixada para trás,
sozinha; que alguém a acompanhou na sua fragilidade, dedicou-se a ela,
oferecendo-lhe o cuidado necessário e garantindo a sua segurança, até que
recuperasse. A raiz da civilização é, por isso, a comunidade. É na comunidade
que a nossa história começa. Quando do eu fomos capazes de passar ao nós e de
dar a este uma determinada configuração histórica, espiritual e ética.
É interessante escutar o que diz
a etimologia latina da palavra comunidade (communitas). Associando dois termos,
cum e munus, ela explica que os membros de uma comunidade – e também de uma
comunidade nacional – não estão unidos por uma raiz ocasional qualquer. Estão
ligados sim por um múnus, isto é, por um comum dever, por uma tarefa partilhada.
Que tarefa é essa? Qual é a primeira tarefa de uma comunidade? Cuidar da vida.
Não há missão mais grandiosa, mais humilde, mais criativa ou mais atual.
Celebrar o Dia de Portugal
significa, portanto, reabilitar o pacto comunitário que é a nossa raiz. Sentir
que fazemos parte uns dos outros, empenharmo-nos na qualificação fraterna da
vida comum, ultrapassando a cultura da indiferença e do descarte. Uma
comunidade desvitaliza-se quando perde a dimensão humana, quando deixa de
colocar a pessoa humana no centro, quando não se empenha em tornar concreta a
justiça social, quando desiste de corrigir as drásticas assimetrias que nos
desirmanam, quando, com os olhos postos naqueles que se podem posicionar como
primeiros, se esquece daqueles que são os últimos. Não podemos esquecer a
multidão dos nossos concidadãos para quem o Covid19 ficará como sinónimo de
desemprego, de diminuição de condições de vida, de empobrecimento radical e
mesmo de fome. Esta tem de ser uma hora de solidariedade. No contexto do surto
pandémico, foi, por exemplo, um sinal humanitário importante a regularização
dos imigrantes com pedidos de autorização de residência, pendentes no Serviço
de Estrangeiros e Fronteiras. O desafio da integração é, porém, como sabemos,
imenso, porque se trata de ajudar a construir raízes. E essas não se
improvisam: são lentas, requerem tempo, políticas apropriadas e uma
participação do conjunto da sociedade. Lembro-me de um diálogo do filme do
cineasta Pedro Costa, «Vitalina Varela», onde se diz a alguém que chega ao
nosso país: «chegaste atrasada, aqui em Portugal não há nada para ti». Sem
compaixão e fraternidade fortalecem-se apenas os muros e aliena-se a
possibilidade de lançar raízes.
Fortalecer o pacto
intergeracional
Reabilitar o pacto comunitário
implica robustecer, entre nós, o pacto intergeracional. O pior que nos poderia
acontecer seria arrumarmos a sociedade em faixas etárias, resignando-nos a uma
visão desagregada e desigual, como se não fossemos a cada momento um todo
inseparável: velhos e jovens, reformados e jovens à procura do primeiro
emprego, avós e netos, crianças e adultos no auge do seu percurso laboral.
Precisamos, por isso, de uma visão mais inclusiva do contributo das diversas
gerações. É um erro pensar ou representar uma geração como um peso, pois não
poderíamos viver uns sem os outros.
A tempestade provocada pelo
Covid19 obriga-nos como comunidade, a refletir sobre a situação dos idosos em
Portugal e nesta Europa da qual somos parte. Por um lado, eles têm sido as
principais vítimas da pandemia, e precisamos chorar essas perdas, dando a essas
lágrimas uma dignidade e um tempo que porventura ainda não nos concedemos, pois
o luto de uma geração não é uma questão privada. Por outro, temos de rejeitar
firmemente a tese de que uma esperança de vida mais breve determine uma
diminuição do seu valor. A vida é um valor sem variações. Uma raiz de futuro em
Portugal será, pelo contrário, aprofundar a contribuição dos seus idosos,
ajudá-los a viver e a assumir-se como mediadores de vida para as novas gerações.
Quando tomei posse como arquivista e bibliotecário da Santa Sé, uma das
referências que quis evocar nesse momento foi a da minha avó materna, uma
mulher analfabeta, mas que foi para mim a primeira biblioteca. Quando era
criança, pensava que as histórias que ela contava, ou as cantilenas com que
entretinha os netos, eram coisas de circunstância, inventadas por ela. Depois
descobri que faziam parte do romanceiro oral da tradição portuguesa. E que
afinal aquela avó analfabeta estava, sem que nós soubéssemos, e provavelmente
sem que ela própria o soubesse, a mediar o nosso primeiro encontro com os
tesouros da nossa cultura.
Robustecer o pacto
intergeracional é também olhar seriamente para uma das nossas gerações mais
vulneráveis, que é a dos jovens adultos, abaixo dos 35 anos; geração que,
praticamente numa década, vê abater-se sobre as suas aspirações, uma segunda
crise económica grave. Jovens adultos, muitos deles com uma alta qualificação
escolar, remetidos para uma experiência interminável de trabalho precário ou de
atividades informais que os obrigam sucessivamente a adiar os legítimos sonhos
de autonomia pessoal, de lançar raízes familiares, de ter filhos e de se
realizarem.
Implementar um novo pacto
ambiental
A pandemia veio, por fim, expor a
urgência de um novo pacto ambiental. Hoje é impossível não ver a dimensão do
problema ecológico e climático, que têm uma clara raiz sistémica. Não podemos
continuar a chamar progresso àquilo que para as frágeis condições do planeta,
ou para a existência dos outros seres vivos, tem sido uma evidente regressão.
Num dos textos centrais deste século XXI, a Encíclica Laudato Sii’, o Papa
Francisco exorta a uma «ecologia integral», onde o presente e o futuro da nossa
humanidade se pense a par do presente e do futuro da grande casa comum. Está
tudo conectado. Precisamos de construir uma ecologia do mundo, onde em vez de
senhores despóticos apareçamos como cuidadores sensatos, praticando uma ética
da criação, que tenha expressão jurídica efetiva nos tratados transnacionais, mas
também nos estilos de vida, nas escolhas e nas expressões mais domésticas do
nosso quotidiano.
Uma viagem que fazemos juntos
Camões n’Os Lusíadas não apenas
documentou um país em viagem, mas foi mais longe: representou o próprio país
como viagem. Portugal é uma viagem que fazemos juntos há quase nove séculos. E
o maior tesouro que esta nos tem dado é a possibilidade de ser-em-comum, esta
tarefa apaixonante e sempre inacabada de plasmar uma comunidade aberta e justa,
de mulheres e homens livres, onde todos são necessários, onde todos se sentem -
e efetivamente são - corresponsáveis pelo incessante trânsito que liga a
multiplicidade das raízes à composição ampla e esperançosa do futuro. Portugal
é e será, por isso, uma viagem que fazemos juntos. E uma grande viagem é como
um grande amor. Uma viagem assim - explica Maria Gabriela Llansol, uma das
vozes mais límpidas da nossa contemporaneidade -, não se esgota, nem cancela na
fugaz temporalidade da história, mas constitui uma espécie de «rasto do fulgor»
que exprime a ardente natureza do sentido que interrogamos.
Cardeal José Tolentino de
Mendonça
Mosteiro dos Jerónimos, Lisboa,
10 de junho de 2020
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