Eucaristia pelas vítimas da pandemia, em Fátima, reuniu bispos e autoridades nacionais, evocando famílias, profissionais da saúde, investigadores e cuidadores
Para ler com atenção...
Irmãos e irmãs,
A pandemia que
está a condicionar todo o planeta coloca-nos diante da evidência do dom
precioso que é a vida humana e de todas as capacidades de que somos capazes
para a defender, mas igualmente da fragilidade do nosso ser individual, das
nossas realizações sociais, políticas, económicas e científicas, bem como do
próprio mundo que habitamos. De certo modo, entrou em paralise quando isto
chegou.
Celebrar diante
de Deus aqueles que partiram como vítimas diretas e indiretas da pandemia
significa reconhecê-los não apenas como números de uma estatística, mas como
criaturas amadas de Deus, abrindo-se a um itinerário de vida que vai para além
daquilo que conhecemos e podemos nesta terra.
Com aqueles e
aquelas que nos deixaram, recordamos também quantos os acompanharam de mais
perto na derradeira etapa da vida, a maior parte deles nos hospitais e nos
lares, mas muitos no isolamento das suas casas: os profissionais da saúde, os
investigadores, os cuidadores e colaboradores de tantas profissões e os que
assumem a responsabilidade de organizar todo este esforço.
A sua dedicação,
esforço, inteligência e abnegação são a expressão do apreço da nossa sociedade
pela vida e de quanto está disposta a investir para defendê-la e apoiá-la,
embora, tantas vezes, não seja coerente com esses objetivos.
Quem dera que
sejamos capazes, como país e como humanidade, de manter esta hierarquia de
valores, de proximidade e verdadeira misericórdia para com a fragilidade,
tantas vezes dramática, da nossa condição humana e do planeta que habitamos.
Se aprendermos
desta epidemia a cuidar uns dos outros e juntos deste mundo, teremos feito
justiça e boa memória dos que partiram e dos esforços de quantos os
acompanharam na última etapa da vida nesta terra.
No entanto, mesmo
envidando todos os esforços, chegamos sempre à conclusão de que eles são
limitados e, a um certo ponto, param, não podem ir mais além. Aceitar que a
vida das pessoas e do planeta é sempre delicada e finita é uma lição desta
crise que vivemos. Aceitar e integrar esta finitude num projeto de vida com
sentido é a mensagem que nos trazem as leituras que acabámos de proclamar nesta
Eucaristia.
A primeira
leitura, tirada do livro de Job, certamente uma das obras-primas da tradição
literária da humanidade, traz-nos o grito, não de um filosófico distante, mas
da dura e dramática realidade de um homem justo e de sucesso, subitamente
atingido por uma série de desgraças, vítima finalmente, depois de ver destruída
e destroçada a sua família e os seus bens, de uma doença destrutiva que o isola
e diante da perspetiva inevitável da morte. É bem a imagem de tantos homens e
mulheres nestes últimos meses, mas sempre, de uma forma ou de outra, de toda a
natureza humana.
Embora reconheça
que não é perfeito, Job não aceita a ideia de que as suas desgraças são um
castigo de Deus, com sugerem os que o observam e julgam, apontando o dedo, mas
nunca estendendo a mão amiga. Não teoriza a dor nem a injustiça, mas sente-as
dramaticamente na carne. O seu grito ecoa por toda a humanidade e por todos os
tempos, como aflição, como protesto, como rebeldia, e finalmente como paradoxal
confiança: “Eu sei que o meu redentor vive e, por último,
sobre o pó se elevará. Mesmo que desfeita seja a minha pele, na minha própria
carne verei a Deus. Eu mesmo o verei, os meus olhos o hão de contemplar e não
como um estranho”.
O seu grito é, ao
mesmo tempo de protesto pela situação aflitiva em que se encontra, de
perplexidade, de incompreensão de si próprio e de Deus, mas igualmente de
proclamação de uma confiança que nem ele sabe como exprimir, mas apenas gritar
na sua dor. É como o grito de uma criança que nem sabe a razão por que chora,
chora porque sabe que a mãe ouve. É esse grito de toda a humanidade, que não se
conforma nem resigna, mas que se esforça por cuidar e amparar a vida em todos
os seus momentos, e por encontrar sentido na luta por superar todas as crises
que vai experimentando. Esse é Job.
Até ao fim da
existência, Job não é um resignado, mas um lutador, não é um acomodado, um
iludido com falsas esperanças, nem acomodado a soluções e explicações fáceis,
mas um peregrino da verdade, da justiça, da vida. Esta é bem a imagem digna da
humanidade que sonhamos.
Por outro lado,
ele percebe que a vida é um dom absoluto e não apenas uma conquista: ninguém
paga o bilhete de entrada nem a viagem de saída. Tudo é um milagre do cuidar e
do amparar. Nascemos e sobrevivemos pela ação de outros que cuidaram de nós,
porque senão não seríamos viáveis; foram eles que nos acompanharam no
desabrochar da nossa vida. Ao sentir a proximidade de concluir o percurso
existencial, Job percebe que o que se segue já não pode ser o resultado do
engenho, nem sequer do carinho humano. Por isso, grita, argumenta e pede a Deus
que faça jus ao seu nome de “justo e misericordioso” e se revele como Criador e
Cuidador da sua fragilidade.
Esta é a dupla
mensagem que Job nos deixa: investigar, procurar, interrogar-se, cuidar; e, ao
mesmo tempo, confiar e abrir-se a um mundo onde só pode ser conduzido pela mão
poderosa e carinhosa de Deus.
É isso também que
nos dizem as irmãs de Lázaro, de que nos fala a leitura do Evangelho. É um
texto todo ele simbólico, mas muito real, da situação de cada um e cada uma de
nós. Estas irmãs têm consciência que a vida é o dom primeiro e fundamental de
Deus. Sabem também que Deus se manifestou amigo e próximo em Jesus, amigo de
família, que tinham convidado para casa, que tantas vezes tinha partilhado com
eles o pão de cada dia. Quando o irmão adoeceu, tinham-lhe mandado dizer: “Lázaro, aquele de quem tu és amigo está
doente”. Não dizem simplesmente “o teu amigo”, dizem “aquele de
quem tu és amigo” está doente. Por isso, quando Jesus chega, três dias depois
da morte de Lázaro, exclamam, em tom de luto, que não está isento de uma
confiança ferida e de crítica velada: “Se
tivesses estado aqui, o nosso irmão não teria morrido”. Quantas
pessoas não têm tido esta experiência nestes dias, à beira de um túmulo dos
seus queridos? Por que é que Deus, que o amava, não atuou? Por que é que se
mantém silencioso e parece à distância?
Diante da dor das
irmãs e da evidência do amigo morto, diz o evangelista que Jesus “se comoveu profundamente” e
em seguida chorou. Essa é a expressão de Jesus, um como nós, que passou pelas
nossas dores, as nossas perplexidades, que grita ao Pai, até, “por que me abandonaste?”. Esse
é o sentir de Jesus perante o sofrimento e a morte. Ele sabe, por experiência
própria, o que é o sofrimento e a morte; ama esta família amiga (que somos nós
todos), cujo irmão morreu, e partilha o nosso luto, a nossa dor e as nossas
lágrimas, como fez ao longo de toda a sua vida, com os doentes, os excluídos,
os pecadores. Porque era um homem sensível, sentiu a fome da multidão; porque
sabia o que era a dor, aproximava-se dos feridos, dos doentes; porque era
alguém que via e sentia o sentido da vida, aproximava-se daqueles que não
tinham esperança.
Mas não veio
apenas para chorar e partilhar a nossa morte; veio para abrir as portas dessa
prisão e grita, diz o evangelista, “profundamente
perturbado”, diante do túmulo que, em breve, ele próprio também
experimentará: “Retirem a pedra”, retirem o
obstáculo desse túmulo que causa horror, separação e rejeição como dizem as
irmãs: “Já cheira mal, é já o quarto dia”.
É essa porta, diz Jesus, é essa pedra que é preciso arrancar. À voz de Jesus, o
morto sai vivo, mas o que a família vê – o que nós vemos e nos causa
perturbação – é ainda um morto, envolto nas ligaduras, que são esse modo humano
de encerrar os defuntos na prisão subterrânea da morte.
Mas Jesus não vê
assim os seus amigos que passaram desta vida. Por isso, dá outra indicação
fundamental para esta família amiga: “Desatem
essas ligaduras! Deixem-no ir!”. Não teimem em ver aqueles que já
partiram simplesmente com o vosso sentir, o vosso saber e o vosso poder. Deus é
maior, mais poderoso e carinhoso do que vós. Aquilo que sentis, uns pelos
outros, é só o reflexo de quanto Deus vos ama. Vós já não controlais o caminho
dos vossos queridos que partiram; eles estão nas mãos do Pai do céu. Cuidastes
deles até aqui, mas o amor do Pai é maior do que o vosso e cuida deles por
caminhos novos e transformados. Deixai-os ir em paz! Conservai a memória deles
com carinho, continuai o bem que eles fizeram; sede misericordiosos com as suas
faltas e limites e limpai da vossa mente os litígios e feridas que vos ficaram,
pois é assim que Deus faz com eles e convosco.
Hoje, no meio da
pandemia, celebrando a memória daqueles que partiram, Jesus vem visitar as
nossas famílias feridas pela saudade – particularmente aqueles que hoje
choram os seus entes queridos – e, em muitos casos, estão sob o peso de não
terem podido dar-lhes a presença e a assistência que desejavam; tolhidas pelo
luto que não puderam fazer e que ainda dói. Como em casa da família de Lázaro,
Ele que passou pela morte e está vivo para sempre, vem trazer-nos o conforto da
sua presença amiga e abrir os nossos olhos e os nossos ouvidos para a grandeza
do poder e do amor do Senhor, Criador e Pai do céu. Penso que Ele continua a
sugerir ao nosso coração:
“Vinde a mim todos vós que
andais cansados e oprimidos e eu vos aliviarei” (Mt
11,28).
Vinde, vós que experimentais a
dor e a doença, nos hospitais, nos lares ou nas famílias,
Vós que assistis os doentes até
à exaustão e ao desânimo e que sois as minhas mãos para levantar, cuidar e
acarinhar. Vós que não suportais mais confinamentos e limitações, e sentis
desejo de irrefreável de liberdade, companhia e festa. Aprendei de mim a cuidar
uns dos outros com responsabilidade, competência e generosidade. Sede
portadores de vida e de bem e procurai não transmitir o mal a ninguém, mas
ajudai quem precisa e partilhai com aqueles que não têm.
Conservai a memória dos vossos
queridos com quem partilhastes a vida. Eu partilho e enxugo as lágrimas da
vossa saudade,
pois o Pai do céu é que cuida
deles com mão forte, fiel e misericordiosa.
Não vivais angustiados com a
vossa vida e o vosso futuro,
Eu estarei sempre convosco,
mesmo quando vos sentirdes sós e abandonados.
Tende confiança e cuidai uns
dos outros e vencereis esta crise como construtores de um mundo mais justo,
fraterno e em paz. E sereis peregrinos de uma Nova Cidade e um Mundo Novo, onde
vos preparo o banquete da vida que não tem fim.
Amen.
D. José Ornelas, presidente da
Conferência Episcopal de Setúbal
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